Nesse estudo, pretende-se examinar se o artigo 136 do Código Tributário Nacional, sempre interpretado como forma de responsabilidade objetiva pela prática de ilícitos, tem força para afastar o princípio garantista da “culpabilidade” e outros elementos subjetivos na aplicação das multas tributárias, à luz dos fundamentos do princípio do Estado Democrático de Direito, como prescrito pela nossa Constituição de 1988.
O garantismo, como “modelo normativo”, consiste numa metodologia de aplicação de normas jurídicas sancionadoras segundo o objetivo de concretização dos princípios e direitos fundamentais. É o modelo do direito punitivo conforme os valores do Estado Democrático de Direito. Apesar da forte constitucionalização do nosso Direito Tributário, no que concerne às sanções administrativas (multas), percebe-se que sua aplicação não se vê justificada sob os rigores do controle constitucional.
Se é verdade que o Direito Penal tem incorporado os recursos do garantismo, não se pode falar que persista um contínuo desse modelo ao longo das distintas searas, como o direito administrativo e o tributário, de modo equivalente. Neste orbe, o método da interpretação conforme à Constituição desponta com grande evidência no garantismo, para afastar essa deficiência de segurança jurídica material, o que se evidencia pela reduzida concretização dos direitos fundamentais nas aplicações das sanções tributárias.
A principiologia do direito punitivo aplica-se, igualmente, ao direito administrativo e ao direito tributário, pois consagram idênticos princípios da legalidade, tipicidade, vedação à analogia, irretroatividade e a retroatividade benigna. Esta legalidade, porém, desvela-se insuficiente sem a acomodação aos direitos fundamentais e demais princípios do ordenamento jurídico. E, dentre outros, a assunção do princípio da culpabilidade não pode ser olvidada, sob pena de mitigar aquele garantismo hermenêutico.
Em todos os âmbitos, os princípios nullum crimen sine legis e nulla poena sine lege convergem para a mesma eficácia e identidade de critérios, sem qualquer mutação normativa. Por isso, qualquer aplicação de regras sancionadoras (tipos) não pode deixar de avaliar a conduta do agente, tanto em relação aos fatos dos quais decorrem as imputações alegadas (antijuridicidade), quanto no contexto do exercício das suas atividades, em relação à observância da legislação vigente e relacionamento com os órgãos competentes. Esta é uma garantia constitucional de fundamental relevo.
Eis aqui nossa primeira conclusão fundamental, o exame da antijuridicidade e da culpabilidade impõe-se também para sanções administrativas e tributárias, dada a unidade do ilícito para fins administrativos, penais ou civis. A aplicação de sanções sem cuidado para os elementos subjetivos descumpre princípios do direito constitucional sancionatório dos mais relevantes, em franca desconexão com o garantismo. Agir diverso da administração, com toda evidência, expõe a decisão ao controle de constitucionalidade, pela quebra da segurança jurídica.
É nesse sentido que somente uma interpretação conforme à Constituição permite compreender os exatos termos do artigo 136, do CTN. Eis sua redação:
“Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato.”
Não se diga, entretanto, que o artigo 136 do CTN reclama a objetividade da sanção tributária e o dolo, assim como a boa fé, a confiança legítima ou a impossibilidade de conduta diversa não poderiam ser examinados pelo aplicador das normas tributárias.
A culpabilidade deve ser conhecida e apreciada porquanto intimamente relacionada à exigência constitucional de individualização das penas (artigo 5º, XLVI da CF), a qual exige a verificação das características individuais do infrator quando da gradação da sanção.
Ao examinar o princípio da culpabilidade, Santiago Mir Puig distingue duas condições de imputação de responsabilidade pessoal, a infração cometida com dolo específico (infração pessoal) e a responsabilidade penal da pessoa:
“Tudo isso me levou a distinguir entre as condições de imputação pessoal do fato antijurídico, dois momentos: (a) a infração pessoal de uma norma de determinação (a norma primaria concreta); (b) a responsabilidade penal do sujeito. Mas antes de desenvolver o conteúdo e o significado de ambas as categorias, é necessário examinar a evolução histórica do termo que se costuma utilizar para expressar a exigência de imputação pessoal: a culpabilidade.”
Diante disso, para a aplicação de qualquer multa, os indícios devem vir conjugados com uma análise da conduta do sujeito, de sorte a legitimar a projeção de consequências jurídicas sancionatórias sobre sua esfera jurídica, cuja sanção deve sempre ser alcançada de modo objetivo. Não é por menos que o artigo 142 do CTN, in fine, aluda ao dever funcional de proposta de aplicação da penalidade cabível, porquanto o auto de infração, em verdade, não aplica a sanção à pessoa à qual imputa conduta delituosa. Em verdade, quem o faz, efetivamente, numa interpretação conforme a Constituição, é a autoridade do processo administrativo, para um exame completo da materialidade dos fatos e das condutas. E tudo sob o manto garantista dos princípios processuais da presunção de inocência, do contraditório, da livre apreciação de provas e do duplo grau de jurisdição.
Nesses termos, quando se trata de alegação de crime, o artigo 137 do CTN é implacável: a responsabilidade é pessoal do agente, ao se observar o exame do dolo e da culpabilidade, em toda a sua extensão.
Deveras, a administração fazendária não pode deixar de examinar as motivações da conduta do contribuinte, objetivada no conjunto de atividades desempenhadas, sob pena de se converter, o ato administrativo de aplicação de multa ou de sanção administrativa em vitanda ilegalidade ou inconstitucionalidade.
Nos dias atuais, seja qual for a corrente teórica do tipo punitivo, a pena somente pode ser aplicada quando presente o exame da culpabilidade, ou nas palavras de Jakobs: “não existe uma lesão da vigência da norma jurídico-penalmente relevante sem culpabilidade”. E prossegue: “somente quem vulnera a norma de comportamento sendo responsável, isto é, sendo culpável, vulnera essa norma, e nesta vulneração da norma é que se define a finalidade da pena”. A culpabilidade é pressuposto inafastável da pena no Estado Democrático de Direito. E não se cumpre o exame da culpabilidade sem a mais ampla e livre apreciação de provas. No garantismo do nosso direito constitucional ninguém pode ser punido sem provas ou afastada a apreciação das provas produzidas pelo acusado, sob a égide do contraditório, para determinar a culpabilidade.
Como assinala Cláudio Brandão, a tipicidade tem duas funções: uma, como garantia (princípio de legalidade) e a outra, de ser “indício da antijuridicidade”. Essa expressão está muito bem utilizada, ao nosso ver.
Função de indício da antijuridicidade objetiva, decerto, posto depender da apreciação de outros elementos, como percebeu Santiago Mir Puig: uma lesão ou perigo a bem jurídico (i); penalmente típica (ii); imputável a uma conduta perigosa para um homem prudente (iii); ou sua evitação (iv); realizada com dolo ou culpa (v) e objetivamente não valorada pelo Direito Penal (vi).
O fato punível define-se pela conduta adotada pelo agente segundo os atributos do tipo (objeto de reprovação), da antijuridicidade e da culpabilidade (juízo de reprovação). O tipo, estruturalmente, compreende como elemento positivo a descrição material da conduta proibida; e, como elementos negativos, as formas consideradas pelo ordenamento como justificações. Portanto, nessa função, assumem funções de garantias (proteção do agente) a legalidade prévia (nullum crimen, nulla poena sine lege) e o exame da culpabilidade, adicionados dos seus pressupostos objetivos e subjetivos.
Por isso, o pressuposto de conduta deverá ser identificado caso a caso, não podendo ser tomado por presunção, haja vista as garantias do ordenamento. Por isso, nos crimes tributários, a acusação deve antecipar as provas desde a denúncia (i), além das provas da defesa (ii), a serem examinadas no contraditório (iii), sob pena de se infringir o disposto no Art. 5º, LV, da Constituição: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. Logo, não pode haver acusação ou decisão judicial sem provas, como expressão do garantismo constitucional. De se ver, portanto, a proximidade axiológica entre o princípio do due process of law e aquele da culpabilidade.
Como bem assinala Günther Jakobs, “sem respeitar o princípio da culpabilidade, a pena é ilegítima”.E isso porque, funcionalmente, os critérios de aferição da culpabilidade correspondem a efetiva garantia constitucional à qual se deve curvar todo o direito sancionador, inclusive o administrativo. Aculpabilidade equivale a um juízo de valoração do comportamento ilícito, como descrito no tipo legal. Aqui, examina-se a presença de “exigência de comportamento diverso (prevista de modo expresso). Esse juízo define ainda a antijuridicidade, que corresponde a permissões, a gerar equilíbrio com o ordenamento constitucional.
Destarte, para aplicar qualquer sanção, inclusive administrativa, não basta a mera alegação objetiva da tipicidade do ilícito. Ainda que adequadamente provado, não se pode afastar a verificação dos critérios da culpabilidade, e o requisito da evitabilidade do dano ao bem jurídico.
Não basta a ocorrência do “fato típico” para evidenciação do ilícito, portanto. Ao lado do princípio da legalidade, que o define, nosso ordenamento congrega o princípio da “culpabilidade”, na sua qualificação. Assim, para que uma sanção possa ser empregada é imprescindível que se tenha “lei” prévia e que se verifique a valoração de uma conduta de culpa (nulla poena sine culpa).
No que concerne às sanções, no domínio das normas gerais, o artigo 97, inciso V, do CTN, prescreve que somente lei pode estabelecer “a cominação de penalidades para as ações ou omissões contrárias a seus dispositivos, ou para outras infrações nela definidas”. A legalidade tributária é requisito, sim, para a tipificação dos ilícitos e das respectivas sanções, mas não se esgota, isolada e objetivamente, sem que se confirme o exame da culpabilidade.
Numa interpretação conforme à Constituição do artigo 136 do CTN, a exigência constitucional de individualização das penas (artigo 5º, XLVI da CF) impõe-se, ao tempo que sua redação deixa claro que a objetividade somente se aplica salvo disposição de lei em contrário.
Essa exigência de culpabilidade encontra-se afirmada no CTN, ao tempo que as normas do artigo 112 prescrevem o dever de aplicar interpretação mais favorável ao acusado, na imposição de sanções, sempre que houver dúvida quanto à materialidade, autoria, ou sanção, a saber:
“Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:
I – à capitulação legal do fato;
II – à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;
III – à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;
IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.”
O dispositivo legal acima transcrito é instrumento da segurança jurídica dos particulares na imposição de sanções administrativas tributárias, cujas normas devem ser interpretadas de modo mais favorável ao acusado, o que só tem cabimento quando se estala uma apreciação da culpabilidade dos agentes.
O garantismo penal demonstra ser inaceitável a contradição de entendimentos entre o que se vê afirmado na apuração das sanções administrativas (multas) e aquilo que se aplica às sanções penais. Por conseguinte, para a aplicação de sanções administrativas, exige-se, igualmente, a prova da materialidade do evento antijurídico e a presença da prova de culpabilidade do agente.
Mesmo que a teoria finalista não tenha a aceitação de outrora, é sempre bom lembrar que, para essa corrente, incorporada ao nosso Código Penal, somente pode ser agente de delito quem realiza a ação dirigida a algum acontecimento final, quando este tem poderes para prever, segundo certos limites, as consequências da sua ação, e que, por isso mesmo, tem capacidade de evitar sua ocorrência. Nesta doutrina, a vontade consciente do fim é o cerne da ação (dolosa), acompanhada da seleção dos meios necessários para sua concretização.
Na atualidade do Direito Penal, segundo certa doutrina, o “resultado” não integra o “tipo” e tampouco se presta para definir a “ilicitude”. Importa avaliar a conduta pelo “resultado juridicamente relevante” a partir de uma ação penalmente reprovável, que somente pode ser entendida como aquela que coloca em perigo o bem juridicamente protegido, como observa Renato Silveira, titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP. Nas suas palavras: “uma vez não demonstrada a concretude de uma desvaloração da ação, não há de se verificar o próprio tipo penal”. Neste caso, o teste de causalidade opera-se entre a “ação”, comissiva ou omissiva, e o “resultado”, avaliado o “resultado” segundo o perigo ao bem jurídico protegido. Assim, desde que provados esses pressupostos, a conduta penalmente reprovada ou injusta será passível de qualificação penal.
De outra banda, é possível compreender no elemento objetivo do tipo a imputação do resultado pelo critério da realização do risco, como observa Juarez Cirino, na linha de Roxin e também de Jakobs. Nessa feição, resultado tem relação direta com a causa (ação), mas evidencia-se na forma derealização do risco criado pelo autor, logo, imputável ao agente em virtude da conduta assumida e pelo risco gerado. A imputação (objetiva) do resultado requer a verificação de um risco produzido pelo autor que influi sobre o resultado no bem jurídico, comprovada como ação pessoal, o que constitui fundamento suficiente para autorizar a imputação do tipo. Ausente, porém, a evidência de relação com o risco sobre o resultado criado pelo autor, este resultado não lhe pode ser imputado. Muita atenção: ainda que a ação possa conter riscos, estes somente serão relevantes para a imputação se realizam no resultado.
A sanção somente pode empregar-se quando o agente “tem poder concreto de não fazer o que faz” (exigibilidade de comportamento diverso). Em vista disso, por exemplo, o ilícito não pode levar o agente à sanção ante à prevalência da presunção de inocência, como consta da nossa Constituição (artigo 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória). Por conseguinte, no exame do ilícito praticado pelo agente, o primeiro cuidado é conceber o “fato punível” acomodado com os limites decorrentes da “culpabilidade” (restrição ao poder de punir do Estado) e da “antijuridicidade”, como formas de proteção do acusado.
Para esse fim de individualização da pena, a culpabilidade é um dos elementos constitutivos do conceito analítico de crime. No direito penal, assim como no direito administrativo sancionatório, o princípio da culpabilidade veda a aplicação de sanções alheia ao exame da conduta do agente.Aplicados esses paradigmas ao Direito Tributário, o garantismo do princípio da culpabilidade impede a imputação de responsabilidade puramente objetiva, independente da intenção do sujeito passivo e leva em consideração apenas o resultado, pois pressupõe a vinculação do fato ilícito com o autor e sua culpabilidade.
Conclui-se, assim, quanto às infrações de natureza tributária, que a regra é a responsabilidade pessoal do agente. Caberá, porém, à administração, demonstrar, de modo específico, a autoria e a culpabilidade de cada acusado, individualmente. O caráter vinculado atribuído ao ato da administração, consistente em lavrar o auto de infração e imposição da multa, reclama o dever de provar o fato jurídico do ilícito e sua sanção, sempre sob uma interpretação conforme a Constituição, na realização dos valores supernos da ordem constitucional, como eficácia do nosso garantismo de direitos fundamentais na aplicação das normas tributárias.