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Dez anos da Lei Anticorrupção: reflexões!

Há exatos 10 anos, na esteira das intensas manifestações populares de 2013, às pressas e com caráter de urgência, o governo Dilma promulgou a “Lei Anticorrupção” (Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013)

Há exatos 10 anos, na esteira das intensas manifestações populares de 2013, às pressas e com caráter de urgência, o governo Dilma promulgou a “Lei Anticorrupção” (Lei 12.846, de 1º de agosto de 2013).

Essa lei poderia ter sido denominada como “Lei da Empresa Limpa”, ou como “Lei de Responsabilidade Objetiva das Pessoas Jurídicas”, mas frente ao pesado ambiente de gritante desfaçatez no uso do erário, a imprensa e os formadores de opinião deram o apelido que ficou gravado na mente e nas obras doutrinárias jurídicas do país: anticorrupção!

Vale lembrar que à época o Brasil figurava em medíocre índice de percepção de corrupção da Transparency International, na posição 72º entre 177 países pesquisados, com apenas 42 pontos, o que nos colocava ao lado de Bósnia, África do Sul e Sérvia; não obstante estávamos melhores e bem à frente de alguns de nossos conhecidos vizinhos, como a Argentina, a Bolívia e o México na 106ª posição e irrisórios 34 pontos.

Para se ter uma referência, os melhores países eram Dinamarca (1ª), Nova Zelândia (2ª), Finlândia (3ª), Suécia (4ª) e Noruega(5ª), todos entre 91 e 86 pontos. Os Estados Unidos figuravam na 19ª posição, ao lado do Uruguai, da França, do Japão e do Chile, entre 73 e 71 pontos. Muitos dos países mais bem colocados já adotavam, em 2013, legislações restritivas às empresas quanto a práticas antiéticas e ilícitas nas relações com as Administrações Públicas. Essa era a uniforme orientação vinda de organismos internacionais como a OCDE e a ONU.

Nessa toada, a Lei Anticorrupção brasileira teve a finalidade precípua de entregar às pessoas jurídicas uma responsabilidade que antes não tinham: a de responder objetivamente por atos ilícitos praticados por seus funcionários contra a Administração Pública brasileira ou a estrangeira. Ou seja, se um gerente da “Organizações Tabajara” (fictícia empresa) oferecesse propina para um fiscal (também fictício) da Prefeitura X, mesmo que os donos da empresa não o soubessem, a “Organizações Tabajara” deveria ser responsabilizada, cível e/ou administrativamente, pelo ato ilícito praticado por seu funcionário.

Pela Lei 12.846/2013, as sanções passíveis de serem aplicadas à pessoa jurídica podem ser desde multas no percentual de 0,1% até 20% do faturamento anual (âmbito administrativo), ou até mesmo a sua decretação judicial de dissolução compulsória (âmbito cível).

O sentido dessas regras foi o de colocar muito medo nos acionistas das empresas, de modo a não poderem mais se furtar, financeira e economicamente, de responder por atos de seus prepostos, acarretando, como consequência, a necessidade de cuidarem melhor dos seus sistemas internos de integridade. Tudo isso, seguindo a já referida experiência internacional e as orientações da OCDE, visava fazer uma mudança cultural desestimuladora das gestões empresariais temerárias e não republicanas por parte de respectivos executivos e gerentes.

Como efeito, desde 2014 tivemos no Brasil relevantes movimentos. O primeiro a se destacar é o de que muitas empresas fizeram seus deveres de casa, ou seja, melhoraram seus procedimentos, códigos de ética e políticas antissuborno, criaram e aprimoraram seus sistemas de integridade, treinaram seus executivos e funcionários, implantaram canais abertos de denúncia e, pode-se dizer, conseguiram transformar culturalmente seus ambientes corporativos, tornando-os éticos. Segundo o anuário “Executivos Jurídicos e Financeiros”, em 2020, 83% das maiores companhias do Brasil possuíam uma área de compliance e de prevenção de fraudes, número crescente ano a ano.

Um segundo ponto a ser destacado é o de que órgãos de controle atuaram contra pessoas jurídicas, como a Controladoria Geral da União – CGU – que puniu 98 empresas em processos relacionados à Lei Anticorrupção, resultando em mais de R$ 800 milhões em multas (dados no site da CGU). Além da aplicação de multas, muitas empresas se viram na necessidade de fazer Acordos de Leniência, outra inovação trazida pela Lei Anticorrupção, o que gerou, apenas pela CGU, 25 leniências celebradas, somando mais de R$ 18 bilhões em ressarcimento de danos e multas.

Ao longo desses dez anos, além das pessoas jurídicas, muitos empresários foram investigados, processados, punidos financeiramente e com restrições de liberdade, como cadeias e/ou prisões domiciliares. Diversas empresas foram inviabilizadas definitivamente pelas sanções aplicadas por inúmeros distintos órgãos de controle, como CGU, MPF, TCU, CADE e outros estaduais, que acabavam competindo entre si para ganhar protagonismo na festejada midiática punição às empresas nacionais e internacionais.

Contudo, é necessário trazer ao leitor uma reflexão: corrupção não é algo que advém apenas do empresário, pois, como se sabe, muitas vezes a pessoa jurídica pode sofrer extorsões e achaques por parte de desonestos agentes públicos e políticos. Se a referida lei tem a incumbência de estimular as empresas a melhorarem seus ambientes internos corporativos, deveria o Poder Público brasileiro aproveitar para também melhorar seus procedimentos e práticas, de modo a casar o esforço de transformação cultural privado com o público.

Será que desde 2013 isso aconteceu no Brasil?

Nos anos iniciais da vigência da Lei Anticorrupção (entre 2014 a 2018), inúmeras medidas de aprimoramento da governança estatal foram adotadas pelo Congresso Nacional, Poder Executivo da União e de alguns Estados da Federação, bem como pelo Poder Judiciário, podendo aqui citar: (i) ampliação das autonomias da Polícia Federal, Ministério Público, COAF e CADE; (ii) leis das empresas estatais e das agências reguladoras, fortalecendo-as e aumentando suas autonomias contra interferências políticas; (iii) lei de introdução ao direito público brasileiro, visando estabilizar as relações jurídicas de direito administrativo e de controle de contas, aumentando a segurança jurídica nacional; (iv) decisões do STF compreendendo possível as prisões depois de decisão judicial terminativa em segundo grau; (v) adoção pelo Brasil de cooperações internacionais contra lavagem de dinheiro, corrupção transnacional e tráfico de drogas, bem como estruturação de controladorias estaduais.

Não obstante, nos últimos anos, muitos agentes políticos, importantes magistrados e até mesmo parcela substancial da sociedade passou a desconfiar seriamente se a luta contra a corrupção teria ultrapassado o equilíbrio necessário para a manutenção das instituições democráticas. Combate à corrupção passou a ser sinônimo de lavajatismo, com perda do apoio da opinião pública. O Supremo Tribunal Federal passou a anular relevantes condenações reiteradamente confirmadas pelas 1ª e 2ª instâncias e até pelo Superior Tribunal de Justiça, mudando significativamente a jurisprudência dominante até então. O Poder Executivo passou a interferir flagrantemente contra a autonomia dos órgãos de controle, como na Procuradoria da República, na Polícia Federal, no COAF. O Poder Legislativo criou o denominado “Orçamento Secreto”, pulverizando o destino de bilhões de reais pelo país a fora, violando o princípio da Administração Pública como fonte de planejamento e transparência.

No lado do setor público, com exceção das empresas estatais que seguiram a cartilha para criar seus sistemas de integridade, a Administração Pública Federal e as estaduais e municipais mantiveram-se inertes na estruturação de bons sistemas de compliance e diminuíram a transparência de suas informações. O mesmo aconteceu com os partidos políticos quando evitaram qualquer obrigação legal para que implantassem canais de ética ou de denúncias, cartilhas ou políticas antissuborno e doações ilegais de campanha.

Com isso, atualmente, temos um paradoxo: as empresas estão obrigadas a serem íntegras e provarem que possuem efetivos sistemas de compliance, sob pena de perecerem e seus executivos perderem a liberdade e o patrimônio; já os partidos políticos, os órgãos de administração pública e os agentes políticos não têm tais obrigações.

Como as empresas que se tornaram éticas conviverão com um ambiente público não ético? Essas pessoas jurídicas sobreviverão? Ou outras empresas não éticas assumirão os locais de atuação das éticas, substituindo-as? As empresas éticas terão força suficiente para obrigar o Poder Público a ser ético?

Infelizmente, os sinais não nos são muito positivos, pois nesses últimos 10 anos o Brasil perdeu 22 posições no índice da Transparência Internacional, caindo da 72ª posição para a 94ª. Atualmente estamos acompanhados por Argentina, Etiópia, Marrocos e Tanzânia, todos com míseros 38 pontos. O Uruguai e o Chile continuam bem-posicionados, nas posições 14ª e 27ª, respectivamente. Dinamarca, Finlândia, Nova Zelândia e Noruega continuam entre as mais bem colocadas.

Muito antes do que esquecer a existência da Lei 12.846/2013, acredito ser um bom momento para avaliarmos os acertos e os erros na sua aplicação, a fim de aprimorar seus instrumentos no sentido de melhorarmos como nação, protegendo o erário e, consequentemente, as próximas gerações. Todos nós, brasileiros, temos muito trabalho a fazer.

* Alexandre Aroeira Salles é mestre e doutor em Direito e sócio-fundador da banca Aroeira Salles Advogados.