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A (I)retroatividade do Rol de Procedimentos da ANS e seu Impacto na Responsabilidade Civil das Operadoras de Saúde

No âmbito do direito à saúde suplementar, são incontáveis as discussões judiciais acerca da responsabilidade civil das operadoras e seguradoras de saúde por negativas de cobertura aos mais diversos procedimentos solicitados por seus beneficiários

Autor: Ana Lívia BrumFonte: A Autora

No âmbito do direito à saúde suplementar, são incontáveis as discussões judiciais acerca da responsabilidade civil das operadoras e seguradoras de saúde por negativas de cobertura aos mais diversos procedimentos solicitados por seus beneficiários. A raiz do diálogo está, sobretudo, na controvérsia acerca da obrigatoriedade de cobertura de procedimentos, medicamentos ou tratamentos que, apesar de solicitados, não constam no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde da ANS.

Nestas lides podemos observar, de um lado, os beneficiários que, à luz da interpretação constitucional, pleiteiam pelo direito, quase que irrestrito, de obter a cobertura aos procedimentos recomendados pelos profissionais solicitantes, e, de outro lado, as operadoras e seguradoras, que atuam no âmbito da saúde suplementar, que defendem a necessidade de se observar as Resoluções Normativas publicadas pela Agência Nacional de Saúde, notadamente no que diz respeito à cobertura obrigatória conforme previsão no Rol.

Não se ignora que a discussão sobre a taxatividade do referido Rol foi intensa no âmbito judiciário, não sendo pacífica a questão na jurisprudência por anos, contudo, com o advento da Lei 14454/2022, a discussão teria, ao que tudo indica, se encerrado.

Efetivamente, quando sancionada a alteração legislativa em setembro de 2022, determinou-se que o Rol da ANS serviria como referência básica de cobertura pelos planos de saúde, estabelecendo o texto legal alguns requisitos para a cobertura de procedimentos não previstos na normativa.

Não se pretende neste momento discutir os embaraços ainda existentes para a efetiva aplicação e fiscalização da norma, mas sim, analisar, após tais alterações, como fica a responsabilidade das Operadoras por atos praticados anteriormente, fundamentados no Rol de Procedimentos vigente à época das solicitações, sobretudo diante da existência de inúmeras demandas judiciais ainda em andamento cujo objeto é justamente a responsabilização das operadoras pela cobertura de tais procedimentos.

De se salientar que a judicialização das questões envolvendo a obrigatoriedade de cobertura pelas operadoras de saúde ainda é intensa, sobretudo em virtude da ausência de regulamentação do recém inserido parágrafo 13 ao art. 10[1]. Inobstante isso, é razoável que se questione, nesse contexto, qual seria o entendimento aplicável aos processos nos quais ainda se discute a responsabilidade civil das Operadoras de saúde por pareceres e negativas que tenham sido proferidos anteriormente à publicação da Lei 14.454/2022.

A APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO E O ROL DA ANS

Consabido que nosso ordenamento jurídico observa o Princípio da Supremacia da Constituição, ou seja, a legislação e normativas devem, inevitavelmente, observar aos preceitos estampados na Carta Magna[2].

Ao considerar a hierarquia das leis, temos, então, a Constituição da República no topo, seguida pelas emendas constitucionais, leis complementares, ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos, e, por fim, as resoluções e portarias.

Nesse contexto, há que se observar que as Resoluções são editadas em exercício do poder regulamentar, e é, portanto, ato inferior à lei e a ela subordinado, nesse caso, apesar de, via de regra, ser ato de competência privativa do chefe do executivo, a competência para publicar atos normativos secundários que objetivam dar execução às leis pode ser desempenhada por outros agentes públicos[3].

No caso dos planos de saúde, tem-se que a Lei 9656/98, alterada pela Lei 14.454/2022, prevê que caberá à ANS editar as resoluções normativas que contemplem a amplitude das coberturas no âmbito da saúde suplementar. Nesse contexto da atualização legislativa, o já citado parágrafo 13 incluído no art. 10 prevê que, de forma excepcional, tratamentos fora da lista deverão ser aceitos, desde que cumpram as condicionantes previstas nos incisos I e II.

Em resumo, tem-se nas resoluções e portarias atos administrativos normativos, que detêm como função precípua explicar ou especificar norma que já esteja compreendida em Lei. Especificamente na Lei de Planos de Saúde, observa-se que é conferida à autarquia, de forma expressa, a competência para estabelecer os procedimentos e tratamentos do plano de referência, dessa forma, negar vigência ao rol, seria, efetivamente, ir de encontro à própria legislação.

Dessa forma, é inevitável interpretar que exclusões contratuais de cobertura, pelas operadoras de saúde, se embasadas no Rol de Procedimentos, não configuram, via de regra, ilicitude, certo é que entendimento contrário seria negar vigência ao texto legal que dá à norma a função de estabelecer o “plano referência”, nos termos legais.

Para fins de interpretação da norma jurídica existem parâmetros que devem ser observados, seja gramatical, sistemático, histórico, teleológico-axiológico e sociológico. Certo é que a discussão interpretativa envolve, também, os critérios de eficácia da norma, especialmente, no tempo. Sobre este último ressalte-se o brocardo jurídico no qual se ensina que “tempus regit actum”, ou seja, os atos jurídicos se regem pela lei vigente à época dos fatos.

Invariavelmente se pretende, ao aplicar tal entendimento, que se respeite o princípio da segurança jurídica[4]. Cite-se, por oportuno, o artigo 24 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por exemplo:

“Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.”

As relações contratuais se estabelecem, via de regra, pela vontade das partes, contudo, no caso dos contratos de planos de saúde, deve se observar que há a integração cogente, que se opera nas espécies de contratos em que constam normas que devem, de forma obrigatória, deles fazer parte, por força de lei[5], e, nesse caso, as normas se sobrepõem à simples vontade das partes.

Forte na doutrina o posicionamento de que a jurisprudência não pode, negando vigência ao texto legal, inviabilizar a operação da saúde suplementar, sobretudo no que diz respeito às normas que estabelecem o plano referência e à possibilidade de se definir no contrato as coberturas devidas, ainda que se considere a alteração legislativa (L. 14.454/22). Por esta razão, não se pode aplicar ao código de defesa do consumidor de forma irrestrita, deixando de observar a harmonia que deve haver entre consumidores e fornecedores.

O legislador, de forma razoável, prevê expressamente a competência do Rol da ANS, como solução para harmonizar a relação contratual, trazendo, dessa forma, segurança ao consumidor, efetividade ao contrato e garantindo às empresas privadas a previsibilidade necessária para se avaliar os impactos econômicos decorrentes do negócio e das tomadas de decisão a ele inerentes.

Portanto, ainda que, posteriormente nova Resolução Normativa entenda que determinado procedimento deva integrar o Rol de Procedimentos, há que se analisar as demandas considerando a norma vigente à época dos fatos, notadamente porque o que se discute nestes casos é a responsabilidade pela cobertura (contratual) que, como se viu, é determinada pela norma infralegal.

Ocorre que, diante de uma situação em que ausente a previsão contratual, e exista a consequente negativa, embasada no instrumento jurídico que fora firmado à luz do Rol de Procedimentos vigente, não se caberia falar em ilicitude por parte das Operadoras de Saúde em proferir tais pareceres negativos, tendo em vista que realizados em exercício regular de direito.

A fim de melhor fundamentar as decisões proferidas nas demandas a esse respeito, é relevante atentar para os enunciados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça nas Jornadas de Saúde, saliente-se a orientação do enunciado 23.

“Nas demandas judiciais em que se discutir qualquer questão relacionada à cobertura contratual vinculada ao rol de procedimentos e eventos em saúde editado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, recomenda se a consulta, pela via eletrônica e/ou expedição de ofício, a esta agência Reguladora para os esclarecimentos necessários sobre a questão em litígio.”

Observa-se que há um incentivo ao diálogo entre a Autarquia e o Poder Judiciário, nesse contexto, ainda que posteriormente à solicitação o procedimento seja incorporado ao Rol da ANS, para fins de responsabilidade civil, seria incabível responsabilizar a Operadora pela negativa embasada na normativa vigente que não contemplava o tratamento solicitado na época dos fatos.

O ENTENDIMENTO DO STJ – RESP 2000657/SP

Exatamente nesse sentido foi o entendimento da quarta turma do STJ ao julgar o Recurso Especial nº 2.000.657, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, que versava acerca da responsabilidade da Operadora de Saúde pela cobertura e indenização do beneficiário por procedimento que foi posteriormente à solicitação e ingresso com a demanda judicial, incorporado ao Rol.

Conforme consta, a Operadora argumentou no sentido de afastar a responsabilidade civil, tendo em vista que a negativa de cobertura foi fundamentada no Rol de Procedimentos vigente à época dos fatos. Logo, a exclusão contratual não configuraria, à luz da legislação civil, ilícito, eis que a atuação da empresa teria sido em exercício regular de direito, não havendo, portanto, que se falar em responsabilização para a operadora.

Nesse contexto, o entendimento daquela turma da Corte Superior foi pela devolução dos autos à origem com a consequente expedição de ofício à ANS a fim de confirmar se o procedimento constava, à época da solicitação, no rol de cobertura, entendendo que a o caso deve ser julgado “à luz do rol da ANS vigente por ocasião dos fatos”[6], validando a norma que determina a aplicação do tempus regit actum.

Ainda que pareça estranho discutir a questão a respeito da interpretação e eficácia da lei no tempo atualmente, considerando especificamente a matéria de direito civil e a norma de conteúdo material, não são raras as decisões judiciais proferidas pelos Tribunais Estaduais em que, inobstante a previsão legal de possibilidade de restringir a cobertura – mesmo após a alteração legislativa, quando não preenchidos os requisitos que autorizam a exceção de cobertura –, entendem pela responsabilidade das operadoras de saúde mesmo que o procedimento não constasse no Rol à época dos fatos, em evidente afronta à legislação.

Por esta razão, verifica-se no posicionamento da quarta turma do STJ a possibilidade de que se restabeleça, de forma unificada na jurisprudência, o equilíbrio entre a posição das operadoras e as garantias de seus beneficiários, trazendo mais harmonia a estas relações jurídicas, a fim de atender ao interesse público conforme pretendeu o legislador, de forma a, atendendo ao consumidor, não inviabilizar a operação das empresas que atuam na saúde suplementar quando atuarem em manifesto exercício regular de direito.

[1] Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei, exceto: […] § 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:

I – exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou

II – existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.” (NR)

[2] Barroso, Luís R. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 11ª edição. Editora Saraiva, 2023.

[3] Ibdem.

[4] Ramos, André de, C. e Erik Frederico Gramstrup. Comentários à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB. Disponível em: Minha Biblioteca, (2nd edição). Editora Saraiva, 2021.

[5] REsp 1.656.161-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 16/09/2021, DJe 25/10/2021. (Tema 977)

[6] STJ – REsp: 2000657 / SP (2022/0133466-0), Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, Data de Julgamento: 16/05/2022, Data de Publicação: DJe 01/06/2022.

Dra. Ana Lívia Brum

Advogada do Battaglia & Pedrosa Advogados. Atuante no Direito à Saúde, Empresarial e Tributário. Graduada em Direito pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo – UNASP EC. Especialista em Gestão Tributária pela Universidade de São Paulo – USP Esalq.

Contato: analivia@bpadvogados.com.br