O que faz uma empresa continuar de pé em plena pandemia de covid-19? Um caixa sólido, é claro. Porém, para empresas como a Calçados Bibi, uma cultura humanitária baseada em propósito faz toda a diferença.
Basta ver algumas decisões tomadas em março. Quando as medidas de isolamento social para combater o novo coronavírus foram aplicadas em vários lugares do país, a empresa colocou todos os 1.250 funcionários em férias coletivas e, 20 dias depois, retomou a produção com jornada reduzida, mas sem redução de salários.
Signatária do movimento "Não Demita", a marca especializada em calçados infantis, que não dispensou ninguém até o momento, mantém funcionários do grupo de risco em casa, recebendo salário normalmente.
Também adotou medidas para ajudar suas 115 lojas franqueadas, de um total de 120 (cinco são próprias): não protestou títulos até a retomada das atividades e renegociará valores caso a caso após as aberturas de lojas.
Com os franqueados, isentou-os da cobrança do fundo de marketing enquanto as lojas estiverem fechadas, auxiliou na revisão de fluxo de caixa, fez lives com assessorias tributária e do trabalho para entenderem as MPs do governo e não demitirem colaboradores, além de auxiliar na negociação de aluguel com shoppings.
Com dois parques fabris em Parobé (RS) e Cruz das Almas (BA), a Bibi desenvolveu até uma estratégia em que um determinado valor, parte da venda de cada compra on-line é destinado como comissão às equipes das lojas, que podem ser escolhidas pelo próprio consumidor. Já o pedido é entregue em até três horas.
"Temos esse compromisso muito forte de cuidar dos nossos colaboradores, dos nossos clientes, dos nossos franqueados e nossos fornecedores", afirma Marlin Kohlrausch, presidente do Conselho da empresa.
A construção de uma marca eficiente baseada em propósito levou até o empresário a batizar seu último livro com o tema. Mas também se baseia em outro princípio muito forte, que entitula essa reportagem, e que, segundo o empresário, ajudou a Bibi a formar um caixa sólido para enfrentar momentos difíceis.
"Nossa empresa parou, voltou com redução de jornada, produzimos pedidos feitos antes da pandemia, e ficamos aguardando as lojas poderem abrir para mandar", afirma. "Mas, como tudo passa, vamos continuar fazendo uma linha de calçados que, em vez de produtos, vende benefícios. Essa é a nossa causa."
A seguir, Kohlrausch, que passou o comando da empresa para sua filha Andrea em 2019, fala sobre cenários, sobre como a Bibi pretende ultrapassar esse momento, e como está se preparando para a retomada.
Em seu livro, o senhor fala sobre como construir uma marca baseada em propósito. Como colocar tudo isso em prática em um momento como o atual?
Nossa empresa fez 71 anos no dia 25 de abril, com uma cultura muito forte da meritocracia, de engajamento das pessoas, de projetos de endomarketing. Aqui, os colaboradores participam de todos os processos, há mais de 25 anos a gente abre balanço... Temos um respeito muito grande pelas pessoas, e a maioria nós preparamos para ser liderança. Também temos uma cultura humanitária baseada em um propósito muito forte que se resume em 'criança deve ser criança', com a Bibi contribuindo para o seu desenvolvimento feliz e natural.
Temos esse compromisso muito forte de cuidar dos nossos colaboradores, dos nossos clientes, dos nossos franqueados e nossos fornecedores. Nos baseamos também em um outro princípio muito forte: falta de resultado em uma empresa machuca. Mas falta de caixa, mata.
Trabalhando com essa filosofia, formamos um caixa sólido para aguentar esses momentos difíceis. Principalmente agora, porque ninguém esperava uma crise como essa, que veio em forma de pandemia.
Seguindo esse princípio, que medidas vocês adotaram para enfrentar esse momento?
Em 20 de março, quando o país todo começou a parar, demos férias coletivas de 20 dias para os nossos 1.250 colaboradores. Depois, voltamos com 25% de redução de jornada de trabalho, mas não de salário. Também não demitimos ninguém, e os 50 funcionários do grupo de risco, estão em casa recebendo normalmente.
Agora, dependendo do grupo, alguns estão trabalhando com redução de jornada de 25%, outros de 50% e outros de até 70%, mas mantendo o salário. Adotamos a MP 936, que foi uma boa medida para ajudar as empresas a não demitir. Se ela não tivesse sido criada, talvez as coisas estariam bem mais difíceis.
De março até maio, o setor calçadista contabiliza mais de 32 mil demissões, e estima queda de 30% na produção este ano (dados da Abicalçados). Como fica a Bibi nesse cenário?
O setor foi um dos mais atingidos, e nossa empresa também foi (em entrevista recente ao jornal Valor Econômico, Andrea Kohlraush, atual presidente da empresa e filha de Marlin, disse que, em abril, a queda nas vendas da Bibi para o varejo foi de 75%). Mas mantivemos o propósito firme de manter empregos e respeitar colaboradores, reduzindo a jornada mas não os salários.
Desde que a quarentena começou, demos férias coletivas, então não produzimos e não vendemos. Sapato não é farmácia nem supermercado para ser considerado essencial - apesar de que eu não concordo, mas tudo bem. Em maio, vários estados começaram a reabrir o comércio aos poucos. Mas São Paulo, por exemplo, um mercado que representa de 35% a 40% produção e vendas de qualquer empresa, fechou totalmente.
Nossa empresa parou, voltou com redução de jornada e produzimos pedidos feitos antes da pandemia, porque depois praticamente não houve mais. E ficamos aguardando as lojas poderem abrir para mandar.
DETALHE DE LOJA DA BIBI: ENTREGANDO VALOR PARA O CLIENTE
Mas, como tudo passa, vamos continuar fazendo uma linha de calçados que, em vez de produtos, vende benefícios. Essa é a nossa causa, e vamos continuar cada vez mais trabalhando nisso.
Temos produtos diferenciados, com tecnologia embarcada e voltadas para saúde da criança, que não transpiram, não têm salto... Também somos a única marca infantil sem toxicidade. Na retomada, o consumidor exigente e mais consciente vai dar muito valor a esses pontos.
Falando nisso, como a Bibi enxerga o futuro no curto prazo? E o novo comportamento do consumidor em meio a tudo isso?
Essa pandemia tem quatro fases. A primeira foi a do pânico, do medo de contaminação. A segunda foi a fase da verdade, quando as pessoas foram ficando desempregadas, começaram a passar dificuldades... A terceira é a da solidariedade, com as pessoas ajudando umas às outras. Nós mesmos, na Bibi, fizemos mais de 60 mil máscaras, mas a maioria foi doada para hospitais, como o de Parobé (RS). De agora em diante, as crianças e as mães que comprarem os produtos nas lojas, à medida que reabrirem, também vão ganhar máscaras.
Já a quarta fase, que é a que estamos agora, é a da negociação, do preço de aluguel das lojas em shoppings, do pagamento da mercadorias, dos contratos dos franqueados. Já o consumidor, mais consciente, vai ver o que a empresa fez na pandemia para cuidar dos clientes, dos colaboradores, dos fornecedores e da comunidade.
Mas será que tudo isso provocará uma mudança de comportamento também nas empresas?
A Bibi tem feito esforços para trabalhar dentro da sua cultura e do seu propósito de cuidar das pessoas, sejam elas clientes, colaboradores e a comunidade, pagando em dia seus fornecedores... Tenho certeza que, num futuro bem próximo, o consumidor vai considerar tudo isso.
Mas, infelizmente, muitas empresas serão obrigadas a demitir em função de um mercado menor, teremos setores onde não vai ter jeito, dependendo da forma como a empresa está posicionada. Por isso consideramos de extrema importância fazer uma diferença tremenda no futuro, partindo de uma liderança mais humana.
Trabalhamos isso há anos, deixando esse propósito claro na cabeça de todos os colaboradores, franqueados e clientes. Um posicionamento muito forte nesse sentido fará grande diferença daqui para frente.
Pensando nos pequenos negócios, como está a situação dos franqueados de vocês?
Não estamos executando nenhum pagamento. Estamos segurando, negociamos, não protestamos... 30% das franquias e das multimarca estão conseguindo pagar em dia, mas 70% não, pedem para postergar faturas, etc.
Essa é a fase da negociação. Vamos acompanhando as empresas para ver quando podem pagar, mas em primeiro lugar, para que isso aconteça, tem de abrir as lojas. Senão, ninguém vai conseguir pagar nada.
Houve cidades sem nenhum caso de covid-19, mas onde parou tudo. Para mim, um grande erro que houve foi esse “quase-lockdown”. Parar tudo não podia, mas como já foi feito, agora temos que consertar.
Como ficaram os planos de expansão depois disso?
Tínhamos um plano de abrir entre 40 a 50 lojas este ano, mas estamos indo para o segundo semestre, então serão abertas de 10 a 12. Mas o mundo não vai acabar: se não mantivermos aquilo que se previa, pelo menos será possível crescer alguma coisa. Afinal, tudo passa, e isso vai passar.
Nesse momento, vamos ter que nos preocupar com outros assuntos, como a maior higiene das lojas, que veio para ficar porque as pessoas vão exigir muito mais cuidados. Tem o home office, que também veio para ficar: na semana passada fizemos uma reunião com uma pessoa na China, outra em Portugal e duas em São Paulo. Quando a gente ia imaginar fazer isso no passado? Agora, tudo isso virou realidade.
Com o varejo reabrindo, a retomada virá no último trimestre. No Brasil, o agronegócio vai muito bem, mas como sempre fomos um país de fronteiras muito fechadas, as pessoas agora vão valorizar mais produtos made in Brazil. Aqui na Bibi, nunca fomos de mandar fabricar fora; agora é hora de produzir e gerar emprego e renda aqui mesmo, com o propósito de proporcionar aos colaboradores o orgulho de pertencer à empresa.
Então o senhor acredita que a retomada não está tão distante.
Grande parte do comércio vai reabrir agora em junho. A indústria, para funcionar precisa do comércio, se não é só produzir para ficar estocado, então acredito que essa flexibilização vai ajudar a melhorar. Mas para as pessoas se adaptarem a esse 'novo normal', só a partir de agosto.
Essa crise tem um ponto de virada em V: cai, mas a subida é rápida. O governo tomou medidas importantes, como a MP 936, a transferência de renda para os mais vulneráveis... Uma série de coisas para ajudar em uma retomada mais acelerada da economia no último trimestre.
Nesse novo mundo, a gente vê empresas que vão trabalhar cada vez mais digital, nas redes sociais, atuarão muito forte em delivery... O novo varejo cada vez mais vai trabalhar em lojas menores, em shoppings.
São novos conceitos, nova educação, nova medicina, um novo mercado financeiro... E dados, dados, dados, reuniões, treinamentos. O home office veio para ficar, escritórios, a meu ver, terão menos importância. Comunicação e mercado terão menos fronteiras... E diante disso, a globalização vai perder espaço.
Em que sentido?
A gente exporta para 70 países, mas sente as dificuldades que estão passando nesse momento. Por causa do vírus, as pessoas vão dar mais preferência aos produtos feitos nos seus países. O novo mundo será mais consciente, por isso acho que o nosso consumidor também vai valorizar mais produtos made in Brazil.
Nessa nova realidade pós-pandemia, e com essa guerra comercial entre os americanos e os chineses, o setor calçadista será bastante beneficiado. Dessa forma, boa parte da fatia que é produzida pela China pode vir para o Brasil, e ganharemos de volta uma parte do mercado que durante muito tempo foi deles.
O foco nas exportações para os países da América Latina também será importante. Vão sobrar oportunidades boas para o setor calçadista que, apesar de ser um dos mais atingidos pela crise, também cai e levanta rápido, por ser uma indústria sem tanta tecnologia, baseada mais em manufatura e que emprega bastante mão de obra. Por isso acredito que, do último trimestre do ano para o começo de 2021, a retomada virá.