Roberta Lippi
A implementação das Normas Internacionais de Contabilidade (IFRS), aprovada em 2007 no Brasil por meio da Lei 11.638 e que afeta todas as companhias abertas e limitadas de grande porte do país, está causando uma verdadeira revolução na rotina e na carreira de contadores, auditores, controllers e executivos da área financeira. A mudança, que unifica os padrões contábeis para estabelecer critérios de comparação entre empresas internacionais, aumenta significativamente o grau de responsabilidade dos profissionais que elaboram ou analisam balanços, exigindo deles uma visão crítica e conhecimentos mais aprofundados de gestão de negócios, finanças corporativas, questões societárias, planejamento tributário e sistemas de informação.
Os treinamentos, debates e congressos sobre IFRS pipocam por toda parte e lotam auditórios com representantes de empresas, universidades e órgãos públicos preocupados em entender e debater as aplicações das novas regras, já em vigor nos balanços consolidados de 2008 publicados este ano.
Mas, apesar dessa corrida contra o tempo, esta lei é entendida pelo mercado como um grande avanço por transformar as demonstrações financeiras em um instrumento efetivo de gestão do negócio, mais transparente e confiável para os investidores. Já para os contadores, acostumados a figurar em segundo plano na escala das profissões da área financeira, trata-se de uma revolução que os coloca em um novo patamar no mercado. Seu papel, até então restrito aos registros numéricos, sobe para o nível da tomada de decisão.
"Esta é uma grande oportunidade de carreira para o profissional contábil, que sempre foi muito discriminado, visto como um registrador de fatos e dados. Agora, ele é obrigado a fazer parte da estratégia da empresa", diz a contadora-chefe do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Vania Borgerth. Para ela, que também é diretora do Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (IBRI) no Rio de Janeiro e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), este é o momento de maior mudança em toda a sua carreira.
Há 16 anos no BNDES, Vania lidera atualmente uma equipe de 50 pessoas. Ao todo, a estrutura da instituição tem 250 contadores, responsáveis por analisar o balanço das empresas que solicitam financiamento. E é da contadora-chefe a missão de capacitá-los em IFRS. Por isso, desde 2006, Vania acompanha de perto as discussões no Brasil e no exterior sobre as normas contábeis internacionais. "Procuramos nos antecipar ao mercado. O próximo passo será certificar internacionalmente todos os nossos contadores", explica ela.
As normas internacionais causam também um impacto importante no ensino, uma vez que exigem mudanças não apenas no currículo dos cursos de ciências contábeis, administração e economia, mas também na mentalidade dos professores e nas metodologias. Afinal, as escolas terão de exigir do aluno um posicionamento mais analítico e não somente o cumprimento de normas pré-estabelecidas. O desafio é grande: segundo o Conselho Federal de Contabilidade (CFC), cerca de 20 a 25 mil contabilistas se formam a cada ano em 1.046 instituições de ensino superior espalhadas pelo país.
Como as regras estão sendo adotadas por etapas e, por isso, há pouquíssimas publicações sobre o tema no Brasil, a responsabilidade de se atualizar e buscar as informações recai sobre todos os profissionais envolvidos com o tema - inclusive os professores. "O conhecimento está se formando e, por isso é muito importante que os professores participem das discussões", diz Sérgio Machado, professor do Ibmec São Paulo. Em relação ao mercado de trabalho, ele acredita que a demanda agora será por contadores que enxerguem a organização de forma mais ampla.
As escolas de ponta no ensino de finanças saem na frente na adequação à nova legislação. A Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras (Fipecafi), ligada à Universidade de São Paulo (USP), é uma das líderes do processo no país, e faz parte do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), grupo formado pelas principais entidades do mercado de capitais responsável pelo estudo, adequação e emissão de normas ligadas à Lei 11.638.
Além de promover uma série de workshops e palestras sobre o assunto em parceria com outras entidades e empresas, a Fipecafi já incorporou ao seu currículo todas as normas publicadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). "O antigo modelo contábil é mencionado apenas como referência histórica", diz o professor Ariovaldo dos Santos. Para ele, mais do que a questão técnica, o maior desafio é a postura que deverá ser adotada pelos professores, alunos e profissionais de mercado. "É preciso mudar a cabeça das pessoas. Elas terão de reaprender a profissão."
A Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Eaesp) também já reformou a disciplina de contabilidade em seus cursos de acordo com o padrão internacional. A cada nova norma publicada pela CVM, os professores levam artigos e a própria legislação para discutir em sala de aula.
A professora Edilene Santana Santos, do departamento de Contabilidade, Finanças e Controle da FGV, vê impactos importantes tanto na carreira dos contadores, que precisam de conhecimento mais profundo para tomar decisões, como dos analistas de mercado, já que eles são os usuários das informações publicadas e precisam interpretar corretamente os balanços. "Com a adoção do IFRS, há flexibilidade para adaptação em cada empresa. O analista vai se deparar com formas diferentes e, ao ler os relatórios, precisa saber como aquela prática adotada afetou os resultados", explica Edilene.
É o que vive na pele Marco Saravalle, analista da corretora Coinvalores e conselheiro da Associação dos Analistas e Profissionais de Investimento do Mercado de Capitais (Apimec). "Foi uma mudança muito sensível para a análise", diz ele, que terá de fazer projeções de mercado para 2009 com as novas alterações. Saravalle acabou de concluir um MBA voltado para o mercado de capitais, porém ainda estudou com base no modelo contábil antigo. "Se eu soubesse (que as regras mudariam tanto) teria esperado mais um pouco para fazer o curso", lamenta. "Nós, analistas, vamos ter que ler muito, buscar informações em palestras e seminários para estarmos atualizados, porque pequenas questões podem ser determinantes na avaliação de uma empresa."
Outro segmento do mercado que tem investido fortemente em capacitação em IFRS são as empresas de auditoria, que têm sido responsáveis por introduzir as novas regras em boa parte das empresas de grande porte no País, além de oferecer treinamento para as equipes internas dessas organizações. Para garantir tal expertise dos auditores, os treinamento no Brasil e exterior são intensivos.
Só na KPMG, foram investidos em 2008 aproximadamente de R$ 4 milhões em treinamentos de IFRS e novos pronunciamentos contábeis. Cerca de 1.800 profissionais da equipe passaram por 280 mil horas de treinamentos presenciais no país e na Europa ou em cursos on-line. "Muitos fatores exigem um grau de subjetividade muito grande, como determinar o valor justo de ativos. São aspectos que exigem maior senioridade dos profissionais", diz o sócio-líder de auditoria da KPMG no Brasil, Charles Krieck. "O processo ficou mais complexo e mais interessante", completa.
A PricewaterhouseCoopers (PwC) também treinou mais de mil funcionários em sessões que variaram de 30 a 100 horas por ano, além de um grupo de cerca de cem "superespecialistas" que fizeram intercâmbio técnico fora do país ou possuem qualificação internacional independente. Além da capacitação interna, a empresa promove constantemente seminários gratuitos para cerca de 400 pessoas sobre a Lei 11.638 e seus impactos nas organizações. "Nossa preocupação é que o mercado todo consiga se capacitar", diz Fábio Cajazeira, sócio da área de mercado de capitais no Brasil.
Há cerca de dez anos, quando a Europa sinalizou a mudança nas regras internacionais, a PwC mundial começou a promover intercâmbios internos para capacitar profissionais dos 154 países em que atua. Cajazeira foi um deles. Passou dois anos no Reino Unido participando de um grupo global especializado em IFRS. Hoje, considerado um "superespecialista", ele acredita que a convergência das regras internacionais é a maior revolução na linguagem de comunicação das empresas com seus diversos públicos. Por isso, o entendimento de quem atua na área não pode ser superficial. "São mais de 40 normas que mudam toda a estrutura de balanço. Não é algo que um curso de cinco horas resolveria." Na opinião dos especialistas ouvidos pelo Valor, o IFRS tende a promover um maior interesse de jovens profissionais para atuar na área contábil.
A demanda já foi identificada pelo Ibmec RJ, por exemplo, que lançou uma graduação em ciências contábeis toda moldada a essa nova realidade. O curso se propõe a formar profissionais que tenham pleno domínio conceitual, funcional e operacional do IFRS e outras questões importantes ligadas à área financeira, mas também traz questões que remetem ao novo papel dos contadores, como gestão de negócios, análise de informações, habilidades de liderança e visão estratégica das atividades contábeis.
Para o vice-presidente de fiscalização do Conselho Federal de Contabilidade, Enory Luiz Spinelli, o pleno ajuste às novas regras deve se dar entre cinco e oito anos. "A história da contabilidade no Brasil, desde a chegada dos portugueses, sempre teve um enfoque tributário, fiscal. Agora, teremos uma contabilidade focada no negócio e no conhecimento."