Vinicius Marques de Carvalho e Marcela Mattiuzo: proposta, com 255 páginas, mostra que poucos casos passaram pelo Cade
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) poderá adotar um "filtro" para identificar casos em que empresas usam a inadimplência tributária para reduzir preços artificialmente e, assim, ganhar mercado. Nesta semana, o Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes), entidade mantida pela iniciativa privada, apresentará ao órgão uma proposta para a aplicação de um conjunto de critérios para a seleção e análise de processos de evasão fiscal sistemática.
Um dos critérios desse filtro mostra que os setores mais afetados seriam os de combustíveis, cigarros e bebidas. Como os tributos representam grande parte do preço desses produtos, qualquer inadimplência resultaria em vantagem frente aos concorrentes.
A proposta, com 255 páginas, foi elaborada por um grupo de advogados especialistas em concorrência, a pedido do Cedes – uma associação civil sem fins lucrativos criada em 2010 e presidida pelo ex-presidente do Cade João Grandino Rodas. Entre os especialistas, estão a advogada Marcela Mattiuzzo e o também ex-presidente do Cade Vinicius Marques de Carvalho, sócios do escritório VMCA.
Poucos casos passaram pelo Cade, segundo a proposta. Foram encontrados só 22 precedentes em que os pedidos de investigações de supostas infrações à ordem econômica estavam relacionadas a práticas tributárias. A pesquisa foi feita com base em doutrina e no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) do órgão.
Um dos casos analisados foi uma denúncia contra o Serviço Social da Indústria (Sesi) de Santa Catarina pelo suposto uso indevido de imunidade tributária na comercialização de produtos farmacêuticos (processo nº 0800.004542/1997-136). A decisão final do Cade – assim como em outros seis casos sobre imunidade – foi pelo arquivamento do processo por não ter sido configurada a prática de preços predatórios.
Mas parecer da Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade opinou pela procedência da representação e paralisação das vendas de medicamentos. "Gozando o Sesi de imunidade tributária, não visando lucro em suas atividades, que é a atividade-fim do capital, os preços praticados por ele, embora não se caracterizem como predatórios, contêm um cunho que desestimula a entrada de novos concorrentes no mercado", diz o documento.
Para que fosse caracterizada a conduta de preços predatórios, de acordo com a proposta, seria necessário demonstrar que o Sesi, ao se beneficiar das isenções tributárias, praticava preços abaixo do custo com o objetivo de eliminar a concorrência para, futuramente, monopolizar o mercado.
Em outro processo (nº 08012.000208/1999-7954), a denúncia foi apresentada contra a Sociedade das Mineradoras do Rio Jacuí (Smarja). Isso porque a ocultação, nas notas fiscais, de mais da metade do volume de areia que era transportada, resultava numa incidência substancialmente menor de ICMS. A medida permitiria a prática de "preços abaixo do mercado".
O Cade também arquivou o caso. Quanto à denúncia de sonegação fiscal, apesar de reconhecer que a conduta violava o direito à concorrência por via reflexa, ao permitir a prática de preços menores, o órgão afirmou que o assunto "foge" da sua competência. Assim, foi determinada a remessa dos autos ao Ministério Público.
Por meio do filtro proposto, além de verificar se o mercado ao qual a empresa faz parte é de alta tributação, o Cade analisaria outros quesitos: se houve uma decisão estratégica da empresa de não pagar tributos; se existe correlação entre a maior participação no mercado e a conduta tributária; e se essa atuação causa dano efetivo à concorrência, inibindo a entrada de novos agentes no setor.
Um dos autores da proposta, o advogado Vinicius Marques de Carvalho alerta que o filtro não alcançaria a situação da empresa que consegue um benefício fiscal ou deixou de pagar impostos por alguns anos em decorrência da crise econômica no país. "Ainda que cause impacto concorrencial, é uma decisão estatal [benefício fiscal] ou uma inadimplência eventual", diz. "Pelo filtro identifica-se casos de enquadramento quando a inadimplência é sistemática, ou seja, é uma estratégia de empresas que são devedoras contumazes".
O Cade pode abrir processo administrativo por denúncia ou determinação do próprio órgão. "Se tiver uma autoridade a mais olhando para essa questão, exerceria mais uma pressão para as empresas não usarem mais esse tipo de estratégia", diz a advogada Marcela Mattiuzzo. A Lei de Defesa da Concorrência (nº 12.529, de 2011) prevê multas, que vão até 20% do faturamento anual da empresa, por infração à ordem econômica.
Helvio Rebeschini, diretor de planejamento estratégico e mercado da Plural, que representa distribuidores de combustíveis do país, vê o filtro com bons olhos. "Grande parte da concorrência desleal no setor se dá por uma questão tributária", afirma. "Os concorrentes que atuam dentro da legalidade são prejudicados."
O diretor-presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac), Márcio Bueno, também é simpático à proposta. Para ele, o critério determinante desse filtro é o efeito no mercado. "Por exemplo, se uma empresa entra no mercado e em pouco tempo o market share sobe de 10% para 20%. Há instrumentos econômicos para fazer a correlação e saber se, por causa de questões tributárias, houve o desvio de parcela significativa do mercado", diz.
Equidade no cumprimento das obrigações tributárias é fundamental para Cristiane Foja, presidente executiva da Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe). "No passado, contávamos com o Sistema de Controle de Bebidas [Sicobe], que controlava o recolhimento de impostos na produção. Com sua extinção, temos a expectativa de uma outra forma semelhante de controle. Isso atenuaria os impactos concorrenciais da sonegação fiscal", afirma.
Há, porém, críticos à proposta. Para os especialistas em concorrência José Del Chiaro e Ademir Pereira Júnior, que atuam em processos no Cade, não compete ao órgão analisar casos tributários. "Cabe à Receita Federal e às Fazendas dos Estados punir as empresas que deixam de pagar impostos", diz Chiaro. "Isso é quase que instrumentar o Cade pelo interesse privado de alguns grupos que não querem ter concorrência."
Para o tributarista Hugo Funaro, do Dias de Souza Advogados Associados, o que não está sob a competência dos agentes fiscais, segundo a Constituição, pode ser da alçada de outros órgãos. "O Cade pode analisar os efeitos de uma sonegação fiscal no mercado, assim como o Ministério Público analisa os efeitos penais da sonegação", diz. "A Lei de Defesa da Concorrência garante que o Cade pode agir sobre quaisquer atos cujos efeitos prejudiquem a livre concorrência."